Quero começar a conversar com vocês contando uma charge da Mafalda que eu gosto muito. Um amiguinho da Mafalda queixa-se com ela de que não consegue entender seus pais, por mais que tente e se esforce. Mafalda pergunta a ele se quando entra em um cinema na metade do filme consegue compreender o começo e ele responde que não pois o filme começou faz tempo e ela responde: “Pois é, quando nós nascemos, nossos pais já tinham começado faz tempo”.
Gosto desta charge porque ela me faz pensar em nossas famílias como filmes de única exibição e edição.
Quando nascemos somos colocados em um mundo que, embora já exista, é dinâmico e em desenvolvimento constante. Este mundo é formado por sistemas que se relacionam e nós mesmos somos um sistema que também influenciará no funcionamento dos outros. Sendo assim, a maneira como o mundo é apresentado à criança passa pelos padrões e a visão da família, em especial, dos pais.
Criamos a visão de mundo e de nós mesmos sob grande influência das relações com nossos pais. Claro que não é só isso, também influencia a fisiologia, inclusive memórias celulares, a complexidade e individualidade internas, o meio sócio cultural, inclusive, segundo algumas crenças, aprendizados de vidas passadas. Aqui porém iremos nos ater mais especificamente às questões da herança emocional que adquirimos de nossas famílias, tanto num nível consciente quanto inconsciente, que influenciam na nossa escolha profissional.
Na família a criança aprende o que esperar das pessoas e aprende também se suas necessidades serão ou não atendidas a partir de quais atitudes suas, bem como o modo mais efetivo de comunicar seus desejos dentro do padrão familiar. Nesta relação modelará sua noção de adequação e pertencimento, desenvolverá suas próprias capacidades, competências e autonomia e aprenderá a tomar decisões e obter autocontrole.
O nascimento de um filho sempre é acompanhado de grande expectativa. Mesmo os pais que dizem não ter expectativa e apenas esperar que o filho tenha a “liberdade” para fazer as próprias escolhas, estão, na verdade, tendo a expectativa de que o filho seja capaz de desenvolver uma autonomia idealizada por eles. Às vezes a expectativa é tão elevada ou tão baixa que não sobra espaço para se movimentar.
Pode ser que os pais esperem que a criança seja a salvadora do casamento, ou a pacificadora, ou a cuidadora, ou aquela que será ou terá tudo o que os pais não foram ou não tiveram. Estas expectativas influenciam na identidade da criança, no “senso de eu.”
As escolhas profissionais e a maneira como nos relacionamos com elas são inconscientes e refletem muito de nossas relações com nossos pais.
Para ilustrar, vamos imaginar uma família com dois filhos, onde há a crença de que elogio estraga e a criança deve ser educada apontando o negativo para que o corrija e assim se torne cada vez melhor e mais perfeita. Uma das crianças, na tentativa de obter o reconhecimento e o amor dos pais, poderá tentar sempre ser o “bonzinho”, agradar o outro e, como apenas recebe o reforço do que não foi adequado, desenvolver a crença de que ela não é boa o suficiente. Como adulto poderá exigir-se muito acima do que seu eu interior realmente é capaz ou mesmo sempre se colocar em posições pouco desafiadoras para manter inconscientemente a crença de que não é merecedora de algo melhor.
O outro filho poderá desenvolver uma atitude de rebeldia com relação à crença familiar, se sentir magoado, assustado e incompreendido e passar a “comportar-se mal” desenvolvendo relações conflituosas com os pais. Como adulto, poderá transferir para relação profissional estes mesmos conflitos e se sentir da mesma forma inseguro e incompreendido. Em ambos casos poderão ter dificuldades em lidar com figuras de autoridade.
Vocês talvez estejam se perguntando como lidar com isso. A melhor maneira é buscar o autoconhecimento e se perguntar: Por quem estou escolhendo ser o profissional que sou? Estou feliz com o que faço? A quem estou tentando agradar ou desafiar? Quais minhas necessidades internas para exercer meu trabalho? As minhas atitudes fazem sentido neste atual contexto e momento de vida ou fazem parte de quem eu fui como criança?
Quando conseguimos estar bem com nossas escolhas compreendemos que somos a única pessoa que conseguimos mudar em nossas vidas; passamos a ser a causa dela, não o efeito da vida dos pais ou colegas. É preciso romper com os padrões familiares que não correspondem ao que desejamos verdadeiramente; saber deixar o eu infantil e vestir o eu adulto e reverenciar nossas origens com respeito e gratidão, pois nossos pais fizeram o que puderam e conseguiram fazer. Desta forma o eu adulto será capaz de fazer escolhas profissionais que lhe tragam satisfação e realização sem projetar nas outras relações as relações parentais e suas necessidades infantis.
Conhecer-se é uma jornada solitária que exige vontade e determinação, mas que quando não se consegue fazer sozinho, a ajuda de um profissional é fundamental.
Voltando mais uma vez ao filme, é ser capaz de escrever seu próprio roteiro e deixar seu próprio legado para as gerações futuras que por sua vez também pegarão o filme começado e assim por diante pois uma das belezas da vida é ser um filme de edição e projeção únicas.